Por Rita de Cássia A Almeida
psicanalista
(para ler esse texto é necessário antes assistir o vídeo: Os dez mandamentos do rei do camarote)
Na última semana, a mídia e as redes sociais, se dedicaram a noticiar o chamado “rei do camarote” com seus bizarros 10 mandamentos. Alguns saíram em sua defesa, outros o satanizaram, mas grande maioria o transformou em alvo de piada e chacota. Se alguém ainda não tinha entendido o que significa ser trollado nas redes sociais, com certeza, agora já sabe. Acho até que Alexander Almeida, o tal rei do camarote, deve ter se tornado também, o rei da trollagem.
Minha primeira sensação ao ver o vídeo foi de indignação: como alguém pode afirmar que gasta “de R$ 50.000,00 ao infinito” numa noitada, quando tantas pessoas no mundo não chegarão a ter essa quantia nem numa vida inteira? E não venham me dizer que o dinheiro é dele e que, por isso, pode gastá-lo como quiser. Para usar apenas de um racionalismo matemático básico, a minha opinião é a de que se alguém tem o suficiente para esbanjar em “bebida que pisca” é porque outros estão sendo privados de uma vida razoavelmente confortável.
Mas esse meu texto não tratará de fazer uma crítica ao modelo capitalista, apesar de fazê-la sempre que posso, trata, na verdade, de explorar minha segunda sensação ao ver o vídeo: a de que estava assistindo a uma caricatura dos homens e mulheres que se multiplicam nesse nosso século. Um amigo me disse que o vídeo lhe pareceu um documentário do Discovery Chanel, daqueles que mostram as estranhezas e peculiaridades de culturas e tribos estranhas e distantes. Concordo. Depois de assistir algumas vezes o vídeo, fiquei pensando que se um alienígena ou algum membro de uma cultura muito diversa da nossa quisesse entender o tipo de pessoa que nos tornamos, valorizamos ou desejamos ser, “o rei do camarote” cumpriria muito bem a função de nos explicar. Obviamente que Alexander é uma versão exagerada e caricata, tão caricata que alcançou, com sucesso, a comicidade.
Entretanto sabemos desde Freud que o chiste, o cômico, é uma das formas que encontramos para lidar com aquilo que nos causa mal-estar. Na fissura da linguagem que não dá conta de representar tudo, irrompe a piada. E Alexander é uma excelente piada. Mas, para a psicanálise, toda piada carrega também, muitas verdades veladas, ou seja, o cômico é somente uma versão do trágico. E é assim que Alexander, num determinado momento, perde a graça e começa a ser alvo de nossa piedade, torna-se um retrato vivo do ditado “seria cômico se não fosse trágico”.
E a tragédia de Alexander é a mesma de Narciso. Narciso é um personagem da mitologia que apaixonado por si mesmo, se desliga do mundo real e acaba por se afogar, absorto e deslumbrado que está com sua própria imagem refletida no lago.
Nessa nossa cultura do individualismo competitivo, do imediatismo e do desejo desenfreado pela felicidade em forma de gozo, a eliminação do outro tem se tornado um caminho comum. No mundo de Narciso, o outro só serve para lhe “agregar valor” ou para “sentir inveja”, ou seja, em ambos os casos sua posição narcisista se mantém. E a tragédia de Narciso é que sua busca de sucesso, reconhecimento e aprovação do outro, apenas para manter-se enamorado de si, o leva paradoxalmente a intensificar o isolamento do eu. Ou seja, no final das contas, Narciso é um deprimido solitário, que afogado em si mesmo, desistiu de investir em laços reais com os outros e com o mundo.
Sendo assim, a tragédia pessoal de Alexander é também a tragédia de nossa época. Sem os exageros do rei do camarote, certamente inflados pelas suas posses econômicas, multiplicam-se os sujeitos que só enxergam o mundo através do seu próprio umbigo, que só percebem o outro como alimento para seu ego. O núcleo da nossa sociedade narcisista é, sobretudo, a necessidade das imagens. Não importa ser ou ter, se isso não se torna visível para os outros, e esse é claramente o objetivo do vídeo produzido por Alexander. O sujeito que emerge da cultura do narcisismo é aquele que depende dos outros para validar sua precária autoestima, ele precisa de plateia e admiração, sem isso, cresce sua insegurança e seu vazio, que, invariavelmente, irrompe em forma de depressão. Ou seja, não é por acaso que a depressão se tornou um mal do nosso século.
E por fim nos chama a atenção a ingenuidade e a infantilidade de Alexander, desconsiderando quão despropositada e desvinculada da realidade ficaria sua performance. Resta constatarmos que somente um sujeito mergulhado num delírio de encantamento consigo mesmo, seria capaz de se expor a tamanho ridículo. Um ridículo que o levou, afinal, a uma espécie de morte virtual e social. Sim, assistimos a um documentário a cores e com trilha sonora, de Narciso mergulhando para dentro do lago. Deslumbrado consigo mesmo, não conseguiu ver o que estava à sua volta. Se ele conseguir emergir, tomara que tenha aprendido a lição... Tomara que todos nós tenhamos aprendido a lição.