Por: Rita de Cássia de A. Almeida
Psicanalista
Dedico este texto em homenagem e em gratidão à Irmã Estefânia, saudosa diretora do Colégio Santa Catarina de Juiz de Fora/MG.
Cursei o segundo grau em um tradicional colégio de freiras, de 1983 a 1985 e essa semana andei lutando com algumas lembranças daquela época. Lembrei-me especialmente de uma das freiras, a que ocupava o cargo de diretora na ocasião: Irmã Estefânia. Irmã Estefânia era o verdadeiro terror da escola, a quem temíamos e odiávamos. Nosso pior pesadelo era ser alvo de suas repreensões ou mesmo cruzar o seu caminho por algum motivo. Mas na verdade, Irmã Estefânia, era praticamente uma sombra, quase nunca a víamos, não circulava nos corredores, falava pouco e nem era acessível aos pais ou professores. Sua presença só era convocada em situações extremas.
Mergulhada nessas lembranças recordei de uma vez, a única vez na qual eu e minha turma fomos o alvo da ira e rabugice daquela mulher. Alguém da turma – que não me lembro quem – inventara uma tal de “bolinha espacial”. Uma bolinha de papel um pouco mais sofisticada, feita de papel alumínio (reutilizado para tal fim após cumprir a função de embalar um sanduíche para a merenda). O fato é que essa “bolinha espacial” era extremamente poderosa, fazia um estrago quando arremessada na cabeça de alguém (e o propósito era exatamente esse). Portanto, quem se apoderava da tal bolinha, já que todas as outras eram de papel comum, era temido e respeitado pelos demais alunos e podia experimentar, ainda que por alguns instantes, a sensação de ter o poder nas mãos e de expressar sua agressividade contra alguém que elegesse como alvo. Essa brincadeira durou várias semanas, sem grandes contratempos: ninguém reclamou de levar bolada na testa ou no olho, ninguém se sentiu vítima de nenhuma violência ou bullying (como nomeiam agora), ninguém reclamou pra nenhum professor, pro pai, pra mãe e ninguém foi encaminhado ao psicólogo ou psiquiatra. Mas, um belo dia... Alguém errou a pontaria e ao invés acertar um colega, acertou a lâmpada fluorescente da sala, que estourou e se desfez sobre nossas cabeças em mil pedaços. Um silêncio sepulcral tomou conta da sala e a frase que todos nós temíamos foi dita minutos depois: - Chamem a Irmã Estefânia!
O tempo que se passou entre essa frase e a chegada da nossa inquisidora foi um dos piores que talvez eu tenha passado até então, e certamente, por isso, jamais me esqueci. Lembro-me do medo que senti, da dor de barriga e do gosto amargo que me vinha na boca só de pensar que meus pais saberiam do ocorrido. Também me lembro da chegada triunfante de Irmã Estefânia, dos berros que ela dava e de sua feição cruel e ameaçadora. Não me lembro do castigo que com certeza nos foi imposto, me lembro apenas que recebemos uma punição coletiva, porque nos recusamos a acusar o autor da façanha. Ah! E depois, meu castigo em casa foi dobrado porque minha mãe teve que comparecer na escola, para dar explicações... Enfim diria que o episódio da “bolinha espacial” foi um trauma em minha vida.
Numa visada superficial, ou talvez numa visada atual, Irmã Estefânia seria apenas uma mulher cruel, prepotente e mandona, que exercia sua sede de poder e seu sadismo sobre pobres e inocentes adolescentes. Mas, avaliando mais profundamente, a função que ela cumpria foi fundamental para nós. Hoje entendo que Irmã Estefânia, na verdade, não era tão somente uma castradora, mas, sobretudo, uma possibilitadora. Como tínhamos uma figura definida a quem dirigir nosso ódio, nossa repulsa, nosso temor, já que podíamos elegê-la a bruxa ou o demônio que infernizaria nossas vidas – a perseguidora responsável por nossos maiores infortúnios – podíamos, por outro lado viver numa relação de harmonia e irmandade com todos os demais membros da escola, professores, funcionários e alunos. O que ficava claro sem precisar ser dito era: todos submetidos à Irmã Estefânia e todos contra a Irmã Estefânia.
Apesar de citar apenas esse exemplo me recordo de muitas outras figuras da minha infância e juventude que cumpriram função semelhante à de Irmã Estefânia. Figuras temidas, respeitadas e odiadas que invariavelmente nos traumatizavam, facilitando bastante as coisas para nós. De fato, nossos pais também ocupavam em maior ou menor medida tal função, suportavam nossa raiva e não tinham medo de nos traumatizar com suas atitudes ou palavras. Eram também castradores-possibilitadores.
Sou mãe de dois adolescentes e vejo que eles não tem tido a mesma sorte que eu tive, afinal, figuras como Irmã Estefânia não existem mais, já que ninguém mais está autorizado assumir tal função, ou melhor, ninguém mais suporta ocupar essa função. Nós, pais e mães, temos medo de despertar a rebeldia de nossos filhos, professores temem ser alvo da ira de seus alunos e assim por diante. Isso faz com que a necessidade de nossos jovens de serem traumatizados, de terem medo, de sentirem ódio ou repulsa por alguém sem precisar de nenhum fato real para tal, tenha ficado completamente prejudicada. Sim, porque avaliando melhor agora, percebo que Irmã Estefânia na verdade, não fez nada de real que merecesse nosso temor e ódio, ela apenas representava um papel, assumia uma figura simbólica traumática extremamente facilitadora.
No entanto, os manuais de educação atuais dizem que devemos ter muito cuidado para não traumatizar nossos filhos ou alunos. Manuais que nos prometem um mundo totalmente higienizado, livre de todo e qualquer mal-estar. Mas o que tais manuais se esquecem de dizer é que, em última instância, nenhuma educação é feita sem traumas, ou seja, educar é invariavelmente traumático, violento, uma forma de impor os preceitos e normas de uma sociedade a um sujeito que quer apenas e tão somente, fazer o que quer, como quer e na hora que bem entender (todos já devem ter convivido com uma criança de 3 anos). Sendo assim, não é possível educar sem traumas, sem violentar de alguma maneira o querer do outro, assim como também não é possível crescer sem se rebelar contra alguém ou alguma coisa, mostrando assim seu próprio querer.
E foi assim que Irmã Estefânia cumpriu sua função de traumatizar e violentar toda uma geração de crianças e jovens sem precisar lançar mão de artifícios cruéis de verdade, nos possibilitando ainda, que soubéssemos exatamente contra o que ou contra quem nos rebelar. Isso nos permitia um certo bussolamento, pois, nossos “algozes” estavam definidos e os preceitos também definidos, sendo que, era a partir de tais referenciais que nos rebelávamos. E para sermos rebeldes precisávamos de muito pouco, bastava quebrar por acidente a lâmpada da sala de aula. Já meus filhos precisam de muita criatividade e esperteza para serem considerados rebeldes. Dependendo do que fizerem, podem ser considerados as vítimas do episódio (o que de longe é a intenção deles), ou pior, podem ser imediatamente encaminhados para o psicólogo ou psiquiatra. O fato é que se tornou uma tarefa muito difícil ser considerado rebelde hoje em dia, o mais comum é ser considerado vítima de algum tipo de abuso físico ou psicológico, ou portador de algum transtorno psíquico, psiquiátrico ou neurológico. Curiosamente, ao desbancar Irmã Estefânia de sua função – com a justificativa de defender os direitos de crianças e jovens e de impedir que passassem por situações de possível violência e constrangimento – nossa sociedade, ao mesmo tempo, vitimizou excessivamente esses jovens, foi progressivamente, minando a potência e a capacidade deles para lidar e superar traumas e subtraindo deles a capacidade de temer e respeitar, mas também a possibilidade de odiar e de se rebelar.
Enfim, tenho percebido que crescer e adolescer tem sido muito mais difícil e penoso para meus filhos do que foi pra mim. Não costumo ser nostálgica, nem sou das que pensam que “naquele tempo” foi sempre melhor que “hoje em dia”. Também não acredito que seja possível resgatar Irmã Estefânia. Meu texto é apenas um alerta para os que acreditam que seja possível educar sem traumas. Um alerta para os pais que acham que estão facilitando as coisas para os filhos ao dizerem sempre “sim” e ao tratá-los sempre como vítimas de um mundo cruel. Um chamado aos que não dizem “não” para crianças e jovens por temerem ser chamados de castradores por não entenderem que, na verdade, a castração é, ao contrário do que se imagina, uma grande possibilitadora. O fato é que sem a ajuda de Irmã Estefânia, precisamos inventar e reinventar outras estratégias para auxiliar nossos filhos ou alunos a delimitarem esse nosso mundo e o mundo para eles. A promessa de uma vida “sem limites” nos parece bastante sedutora, nos remete à noção de liberdade, tão cara para o mundo moderno ocidental. Todavia, ter liberdade de escolha não é o mesmo que escolher tudo, e sim, conseguir dizer “não” para algumas coisas. Mas, quem não reconhece o “não”, como será capaz de dizê-lo? Sendo assim, especialmente para os jovens, uma existência “sem limites” não tem sido e jamais será vivenciada como uma benção libertadora – podem estar certos – mas sim, como uma maldição, que inviabiliza qualquer escolha desejante.
sexta-feira, 4 de dezembro de 2009
O desafio das drogas
Por Rita de Cássia de A. Almeida
Trabalhadora da Rede de Saúde Mental do SUS
Publicado no Jornal O Tempo em 14/11/2009
A questão das drogas na atualidade é emblemática – especialmente quando regada pela chamada “epidemia do crack” e seus desdobramentos – e se tornou para a saúde pública um enorme desafio. Sou uma trabalhadora da rede de saúde mental do SUS e vivo cotidianamente esse desafio; minha especialidade é “botar a mão nessa massa”.
É preciso ter coragem para dizer que a questão do tratamento da compulsão pelo álcool e outras drogas é cercada de muitos fracassos, fracassos ainda maiores quando se concebe como única forma de tratamento a abstinência; de qualquer maneira e a qualquer preço. Sabemos que diante de problemas graves e de difícil solução, especialmente em situações novas, é comum que procuremos conforto em soluções que já nos são conhecidas. Assim, sustenta-se a idéia de que a internação involuntária seria a milagrosa e necessária intervenção que resolveria o problema das pessoas adoecidas pelo uso de substâncias psicoativas.
Entretanto, ao desenterrar essa nossa velha conhecida no âmbito das propostas de tratamento para as enfermidades mentais, o que conseguimos é, tão somente, oferecer respostas velhas para problemas novos. É preciso dizer que as internações involuntárias – outrora utilizadas em doses cavalares com os doentes mentais – não solucionaram o problema deles, nem de suas famílias, pelo contrário. Também é importante que se diga que uma internação involuntária não é capaz de tratar ninguém, ela pode apenas, na melhor das hipóteses – se utilizada de maneira parcimoniosa, respeitosa e criteriosa – possibilitar uma intervenção primeira, pois que, o início do tratamento de fato, só será possível com a implicação e o desejo do sujeito e em locais ou situações onde a participação da família, o apelo comunitário e a inserção social sejam considerados.
Mas é claro que a fala sofrida e emocionada de pais e mães desesperados e impotentes diante do vício do filho, nos fazem concordar com medidas extremas como essa (e às vezes concordamos). No entanto, o que nem sempre é dito, é que passado o alívio dos primeiros dias ou semanas da suposta ‘salvadora’ e ‘milagrosa’ internação, os pais vão perceber que o filho deles não recebeu nenhuma espécie de vacina ou armadura que o proteja da compulsão pelas drogas, e o ciclo então tende a se repetir indefinidamente, ou pelo menos até que o tratamento ocorra de fato.
Defendemos, portanto, que a internação tradicional parece, mas não é a solução para os problemas relacionados à dependência de sustâncias. E isso não quer dizer que as soluções possíveis sejam mais simples ou baratas, ao contrário, são muito mais complexas e exigem uma grande diversidade de investimentos, aparatos, intervenções, instâncias e estratégias. E nessa direção, muita coisa interessante e verdadeiramente inovadora está acontecendo. Nos CAPS (centros de atenção psicossocial) e nos CAPS AD (álcool e drogas) espalhados pelo país. Pelas mãos dos Redutores de Danos que oferecem cuidado para os que só tem a rua como clínica possível. Nos projetos governamentais e não governamentais que ocupam comunidades carentes para oferecer acesso à educação, esporte, lazer e cultura àqueles com poucas oportunidades de escapar do jugo das drogas.
Concluindo, aumentar a oferta de leitos para a internação e/ou facilitar o mecanismo da internação involuntária é uma resposta simplista demais, pobre demais e, sobretudo ultrapassada quando a intenção é responder de maneira eficiente a esse grave problema de saúde pública. Nosso desafio é muito maior e para enfrentá-lo toda a sociedade precisa “colocar a mão nessa massa”.
Trabalhadora da Rede de Saúde Mental do SUS
Publicado no Jornal O Tempo em 14/11/2009
A questão das drogas na atualidade é emblemática – especialmente quando regada pela chamada “epidemia do crack” e seus desdobramentos – e se tornou para a saúde pública um enorme desafio. Sou uma trabalhadora da rede de saúde mental do SUS e vivo cotidianamente esse desafio; minha especialidade é “botar a mão nessa massa”.
É preciso ter coragem para dizer que a questão do tratamento da compulsão pelo álcool e outras drogas é cercada de muitos fracassos, fracassos ainda maiores quando se concebe como única forma de tratamento a abstinência; de qualquer maneira e a qualquer preço. Sabemos que diante de problemas graves e de difícil solução, especialmente em situações novas, é comum que procuremos conforto em soluções que já nos são conhecidas. Assim, sustenta-se a idéia de que a internação involuntária seria a milagrosa e necessária intervenção que resolveria o problema das pessoas adoecidas pelo uso de substâncias psicoativas.
Entretanto, ao desenterrar essa nossa velha conhecida no âmbito das propostas de tratamento para as enfermidades mentais, o que conseguimos é, tão somente, oferecer respostas velhas para problemas novos. É preciso dizer que as internações involuntárias – outrora utilizadas em doses cavalares com os doentes mentais – não solucionaram o problema deles, nem de suas famílias, pelo contrário. Também é importante que se diga que uma internação involuntária não é capaz de tratar ninguém, ela pode apenas, na melhor das hipóteses – se utilizada de maneira parcimoniosa, respeitosa e criteriosa – possibilitar uma intervenção primeira, pois que, o início do tratamento de fato, só será possível com a implicação e o desejo do sujeito e em locais ou situações onde a participação da família, o apelo comunitário e a inserção social sejam considerados.
Mas é claro que a fala sofrida e emocionada de pais e mães desesperados e impotentes diante do vício do filho, nos fazem concordar com medidas extremas como essa (e às vezes concordamos). No entanto, o que nem sempre é dito, é que passado o alívio dos primeiros dias ou semanas da suposta ‘salvadora’ e ‘milagrosa’ internação, os pais vão perceber que o filho deles não recebeu nenhuma espécie de vacina ou armadura que o proteja da compulsão pelas drogas, e o ciclo então tende a se repetir indefinidamente, ou pelo menos até que o tratamento ocorra de fato.
Defendemos, portanto, que a internação tradicional parece, mas não é a solução para os problemas relacionados à dependência de sustâncias. E isso não quer dizer que as soluções possíveis sejam mais simples ou baratas, ao contrário, são muito mais complexas e exigem uma grande diversidade de investimentos, aparatos, intervenções, instâncias e estratégias. E nessa direção, muita coisa interessante e verdadeiramente inovadora está acontecendo. Nos CAPS (centros de atenção psicossocial) e nos CAPS AD (álcool e drogas) espalhados pelo país. Pelas mãos dos Redutores de Danos que oferecem cuidado para os que só tem a rua como clínica possível. Nos projetos governamentais e não governamentais que ocupam comunidades carentes para oferecer acesso à educação, esporte, lazer e cultura àqueles com poucas oportunidades de escapar do jugo das drogas.
Concluindo, aumentar a oferta de leitos para a internação e/ou facilitar o mecanismo da internação involuntária é uma resposta simplista demais, pobre demais e, sobretudo ultrapassada quando a intenção é responder de maneira eficiente a esse grave problema de saúde pública. Nosso desafio é muito maior e para enfrentá-lo toda a sociedade precisa “colocar a mão nessa massa”.